terça-feira, 23 de agosto de 2016

Da finalidade do processo

Começo aqui uma série de análises sobre a obra de Pontes de Miranda, "Comentários ao Código de Processo Civil" a luz da Teoria Geral do NOVO CPC.
 Não nos demorando, comecemos com a seguinte constatação: Se o Estado chamou a si a tutela dos conflitos sociais, a função da justiça, então se apoderou do DEVER de tutela jurisdicional, criando a todos os interessados a pretensão à tutela jurídica, a que corresponde o seu dever de prestar aos figurantes o que prometera, resvalando no art. 5º, XXXV da CF/88.
O fim do processo é aplicar a regra jurídica ao caso concreto. Preexiste ao processo a regra jurídica que incidindo sobre o suporte fático, dá ao interessado a pretensão à tutela jurídica. O Estado cumpre o que é o seu dever de tutela jurídica decidindo; mas cumpre-o da seguinte maneira: se aplicar como incidiu ou diferentemente, é ato que corresponde ou não à incidência. Porém, independe de ser aplicada desta ou daquela forma, a prestação jurisdicional foi entregue (MIRANDA : 1996).
Adolf Wach demonstrou em sua obra que o processo civil independe daquilo que é o objetivo final das partes no processo. Ou seja, o processo independe do intuito de “pacificação”. A finalidade do Processo Civil é, por outro lado, a realização do direito. Esse é o efetivo interesse do Estado: “A realização do direito”. Da realização do direito é que decorre a pacificação social. Isso quer dizer, “A função ‘pacificadora’ do processo existe, mas é mediata. Imediata é a função ‘realizadora do direito objetivo’” (MIRANDA : 1996).
Isso não quer dizer que o processo seja aquela pacificação ou essa realização. Confunde-se, aqui e ali, a finalidade de um instituto com a essência deles. A confusão entre “ser” e “fim” leva à afirmações formalistas, de só se poder conhecer essência pela finalidade. Não é essência do direito processual “realizar o direito objetivo”; assim como também não o é “a pacificação social”. O que de essencial há no direito processual é a aplicação do direito, e, veja-se, não só a aplicação do direito pré-existente, como também a do direito que se revela no momento mesmo da sentença (MIRANDA : 1996).
Ora, o fim do processo é pré-processual (diretamente: realização do direito objetivo; e, indiretamente: pacificação social) e estranho ao direito processual, pelo menos em sua estrutura. O fim depende de certas regras sobre interpretação e aplicação das leis dirigidas ao juiz. Regras que não se põe no processo em si. O direito processual é meio, técnica. Os fins pertencem, na verdade, ao direito público, ou melhor, à estrutura política de cada Ordenamento Jurídico. Quando examinamos cada um dos princípios de algum Código de Processo Civil, encontramos fins particulares, políticos, de cada um deles, e certos fins gerais, que ondulam entre realizar o direito e pacificar.
O Iura novit curia (o juiz conhece o direito) assegura vir que vem ao direito processual em primeira linha a realização do direito objetivo, e não a composição das partes. A realização do direito tem uma finalidade precípua de gerência das relações sociais de modo juridicamente ordenado, ou seja, a própria pacificação social, o que possibilita a conformação do elemento humano e populacional, e não apenas esse. Ora,

A população é concebida como um recurso, um trunfo, portanto, mas também como um elemento atuante. A população é mesmo o fundamento e a fonte de todos os atores sociais, de todas as organizações. Sem dúvida é um recurso, mas também um entrave no jogo relacional (Raffestin, 1993:67)

Por esse motivo não pode ser a pacificação social a finalidade imediata do processo. Esse fim não é processual só, mas é o fim de toda a política jurídica. O processo é apenas a aplicação do direito por um órgão do Estado, o que só por si demonstra que aplicação e processo não são coextensivos. O credor que se paga com dinheiro do devedor que estava em suas mãos nem por isso deixa de aplicar o direito. O devedor que, instado ou não, pagou, também o aplicou. No fundo, só existe como diferencial o elemento autoritativo estatal. Fora daí, cairíamos em distinção entre ideia e realidade do processo. Quando o processo se afasta dos seus pressupostos, o autor não pode ser parte, quem diz ser juiz não é juiz, o real não se separa ou se afasta da ideia do processo; não há relação jurídica processual, que é efeito (MIRANDA : 1996).
Pensar-se que é essencial ao processo a apuração da verdade, como é essencial à ciência, releva que não se leva em conta terem existido períodos em que não se tinha tal escopo, e ainda hoje o juiz têm por fatos verdadeiros circunstâncias e situações que não no são. Tampouco é essencial ao processo realizar o direito objetivo.
Vejamos. Surgem certas consequências da distinção entre função mediata (pacificação) e imediata (realização):

                     I.        O Estado é indiferente ao mérito, elemento de fundo do processo, no que toca à sua pretensão à tutela jurídica. Do qual decorre o princípio da imparcialidade do Estado Juiz, pois razão ou sem-razão do autor é o elemento de pacificação.
a.    Ora, há ações que não supõem ter havido dissídio (tutelas constitutivas, por exemplo), que justifique a provocação da função pacificadora.

Explicando:

·         “A actio romana continua a existir independe da ‘ação’ no sentido de invocação do juiz, ‘plus’ que se junta à ‘actio’ quando se chama o obrigado a juízo”

1 - Actio romana => atuação contra o obrigado (quer diretamente, quer através de outros particulares, quer do Estado)
2 - ajuizamento de pedido (mais restrito)


Plus” = invocação do juiz. É o elemento medieval que se superpôs, na cultura ocidental, à actio romana.
O “plus medieval” + “actio romana” se juntaram, mas não se fundiram.
As petições iniciais contêm a afirmação contra o adversário, mas não dirigida ao próprio, mas para que ele a impugne ou não. Contêm também a comunicação de vontade de ver resolvido o pleito, bem como a declaração de vontade que liga o Estado. O particular que cobra de outro ou manda cobrar a dívida não judicialmente, exerce a actio sem o plus. Ou seja, não exerce a ação no sentido de querela judicial. “Ação” ou demanda ou lide é o negócio jurídico com o qual o autor põe o juiz na obrigação de resolver a questão, ainda que seja a questão de ser cabível ou não a constituição, o mandamento ou a execução (MIRANDA : 1996).
O que cria/produz a própria actio (actio nata)? É o elemento violativo.
O que cria a ação/demanda (actio+plus)? Capacidade de ser parte + a pretensão à tutela jurídica.
O que é pretensão? Posição potencial de exigir = estado de poder produzir a actio romana.
Isso significa que a actio nata é o elemento violativo que transforma a potência de exigir (pretensão) em efetivo exigir (MIRANDA : 1996).
Diz-se que na demanda processual à tutela declarativa não há o pressuposto da violação. Ocorre exercício da pretensão à tutela jurídica, ocorre ação/demanda, ocorre actio e ocorre uso de forma (rito). Mas não deveria haver violação para haver actio? Respondo: Lá na actio não há sempre a pretensão de direito material (não confundir com a pretensão à tutela jurídica), sem ação. Há a pretensão à tutela jurídica, dizem outros, mais a pretensão e a ação criada pelo texto de lei (MIRANDA : 1996).

                    II.        Sentença pacifica, efetivamente. Mas acima disso, realiza o direito, de modo que é perceptível a ligação (continuação) entre lei e sentença, encaradas como produtos da atividade estatal.
a.    Ou seja, a sentença tem a função de realização do direito ainda que a decisão de mérito seja desfavorável ao autor.

Demanda = “ação” (no sentido só processual). É a actio romana somada ao plus medieval. Por isso, pode haver demanda, ‘ação’, e decidir-se que o autor não tem actio (o direito material), ou que não tem ação nem pretensão, ou que não tem ação, nem pretensão, nem direito. Quem exerceu ação declarativa, e perdeu, teve afirmação de que não tem o direito, a pretensão ou a ação que disse ter (MIRANDA : 1996).

                     I.        Os poderes e deveres do juiz sobrelevam, de modo que, para ele, os princípios processuais são, em regra, cogentes, e não dispositivos.
a.    As concepções que desatendem ao caput e à consequência I. levam a erros de interpretação das leis processuais e a confusões que não deixam revelar a “vontade de volver ao passado”, própria de estados de crise social.

b.    Iura novit curia

A relação jurídica processual é entre autor e Estado. Poderá se completar com a angulação (autor, Estado; Estado, réu), porém a angulação não é elemento essencial à configuração da realização jurídica processual entre o autor e o Estado, nem se exclui com a falta de angulação a reciprocidade nem a pluralidade de autores ou réus (MIRANDA : 1996)
Gráfico de Konrad Hellwig:

No sistema da angularidade necessária: A relação jurídica processual se perfaz com a citação do réu. A relação pode surgir desde o despacho ou do seu trânsito em julgado, porque a relação pode ser só entre o autor e o Estado, não havendo a necessidade de angularizar e aperfeiçoar a relação processual (MIRANDA : 1996).
A relação jurídica processual exsurge, de ordinário, com a apresentação da demanda; portanto, no momento mesmo em que o juiz toma conhecimento da petição e não a repele. A citação completa a angularidade. O despacho, na petição, estabeleceu a relação jurídica processual "autor Juiz", a citação, a relação jurídica processual "Juiz réu"(MIRANDA : 1996).
Admitindo-se a extinção do processo (não a inexistência do processo!) por meio da sentença terminativa, art. 485 do CPC, está aí a prova de que a relação jurídica processual se forma se o juiz não repeliu, ab initio, como inepta, a petição (MIRANDA : 1996). A angularização dependerá sempre da existência dos pressupostos processuais e pré-processuais.
Sobre os pressupostos processuais no pensamento de Pontes de Miranda, estudaremos mais tarde.


BIBLIOGRAFIA

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo I: arts. 1º a 45. Rio de Janeiro. Forense, 1996.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Acerca da Ampla Defesa no Processo Penal

A defesa do direito de um cliente é o mote do exercício do Direito, seja seu cliente um particular, seja a Administração Pública. Todos nós, estudantes de direito, operadores jurídicos, promotores, advogados, assessores e etc., trabalhamos para construir argumentos cada vez mais bem erigidos e bem fundamentado, para que sofra ele o mínimo a quaisquer tempestades argumentativas da parte adversa. Os promotores de justiça devem construir uma acusação coesa e com poucos furos na enunciação dos fatos, ao passo que os advogados devem demonstrar que os fatos não aconteceram da forma como apresentadas pela acusação. A defesa é um objeto de controle social contra o sentimento vingativo individual que pode se apropriar das instituições para lograr suas mais perversas intenções sentimentais. Num Estado Democrático de Direito, o interesse individual de vingança cede espaço para o interesse social de justiça e de dignidade da pessoa humana. Afinal, independente do ato pratica, ainda figuram os acusados e condenados, ao revés do que entendem alguns, como pessoas humanas.

Mostra-se, então, o quão importante é o contraditório e a ampla defesa para constituição da justiça social. Tal motivo me leva a indagação do que exatamente consiste a ampla defesa.

Ora, enquanto o contraditório é princípio protetivo de ambas as partes (autor e réu), a ampla defesa tem por destinatário unicamente a figura do réu (acusado em sede de persecução criminal). No interior do princípio constitucional da ampla defesa, encontrarem subdivisões que possibilitarem um corte metodológico de ampla aplicação prática. Temos duas formas de defesa em processo penal: a autodefesa e a defesa técnica.

A defesa técnica (processual ou específica), aquela que efetuada por profissional habilitado, é indispensável e irrenunciável, ou seja, é sempre obrigatória. Isso significa dizer que o acusado jamais poderá, por pretensa vontade própria, não ser defendido por advogado especificamente constituído para sua defesa. Além de ferir a ampla defesa, feriria outro dispositivo constitucional, o da igualdade processual ou paridade de armas, que consagra o tratamento isonômico das partes no transcorrer processual, que está configurado no art. 5º, caput da Constituição Federal, em que a falta de defesa técnica imporia situação de hipossuficiência defensiva processual ao réu.  Ainda que o acusado quede inerte, não constituindo advogado para sua defesa processual, ser-lhe-á dado defensor público (intimado para prestar assistência jurídica) ou nomeado defensor dativo. Por força do  Art. 263: 
Art. 263. Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação. 
O acusado que é Advogado pode apresentar defesa “em nome próprio”, sem necessidade de constituição de outro profissional.

Já a autodefesa (material ou genérica), aquela defesa realizada pelo próprio imputado, é dispensável e renunciável. Em face disso, compreende o Direito que é exercício da autodefesa o comparecimento aos atos processuais, o direito de ser interrogado e o direito a ser intimado para fins recursais em juízo de primeiro grau de jurisdição.

Perceba! A defesa técnica, dentro do Processo Penal, é sempre obrigatória. O que não significa que a autodefesa, se existir e for executada pelo réu, será complementar, um plus, na defesa prestada pelo advogado. Isso significa que o réu jamais poderá se abster de ser representado por advogado, mas poderá deixar de se autodefender, por exemplo, permanecendo silente durante o interrogatório. Ora, o interrogatório é o momento em que o próprio juiz poderá fazer perguntas ao réu, onde ele pode falar a vontade a fim de convencer o juiz de sua versão dos fatos. E se o réu, no interrogatório em plenário, o réu apresenta tese argumentativa distinta do seu advogado? Bem, entende-se que ambas as teses sustentadas devem ser levadas ao conhecimento dos jurados, por força do art. 483, do Código de Processo Penal.

Assim, a autodefesa fica adstrita ao âmbito de conveniência do réu, que pode optar por permanecer inerte, invocando inclusive o silêncio. Há também, dentro da autodefesa, uma divisão metodológica muito útil aos operadores do direito. É o direito de audiência, oportunidade de influir na defesa por intermédio do interrogatório, e o direito de presença, que consiste na possibilidade de o réu tomar posição, a todo o momento, sobre material produzido, sendo-lhe garantida a imediação com o defensor, o juiz e as provas. 

Por fim, a ampla defesa não se confunde com a plenitude de defesa, estabelecida como garantia constitucional própria do Tribunal do Júri no art. 5º XXXVIII, “a”, CF/88. Ampla defesa é uma coisa, plenitude de defesa é outra coisa bem diferente. O exercício da ampla defesa deve conter argumentos estritamente jurídicos (normativos) a serem invocados pela parte no intuito de rebater as imputações formuladas. Por outro lado no exercício da plenitude de defesa, autoriza-se não somente de argumentos técnicos, como também os de natureza sentimental, social e até mesmo política criminal, no intuito de convencer o corpo de jurados.